Projecto Olha-te – Exposição de Artes Plásticas A Cura Pela Arte

Novembro 28, 2010 in Blogue

A Arte nas Nossas Vidas.

Ars Longa, Vita Brevis” – A vida é curta, a arte é eterna,

Primeiro aforismo de Hipócrates, pai da medicina grega.


A arte está hoje presente em todos os dias nas nossas vidas. A todo o momento que descemos uma rua de uma qualquer cidade, quando entramos numa praça, ou nos dirigimos a uma qualquer instituição, que não tem de ser necessariamente um museu ou um centro cultural, esbarramos com a presença de obras de arte. Quando estamos na sala de espera de um médico, de um advogado, no escritório de um grande empresário ou de um contabilista, ou mesmo no gabinete de um modesto comerciante, é provável estarmos a contemplar algum objecto artístico. Porque é que isto acontece? Para que serve toda esta arte que povoa o nosso quotidiano? A resposta pode, em certa medida, ser simples: a arte humaniza o espaço, torna-nos mais sensíveis e perceptivos, promove, pelas suas qualidades intrínsecas, a nossa liberdade, no plano individual como no colectivo. A arte faz-nos sentir melhor. Mais pessoas.

A designação da exposição A Cura pela Arte remete para uma qualidade de acção da arte de actuar sobre o humano com uma capacidade transformadora. Não se trata, com certeza, de substituir o acto médico, de substituir o acompanhamento terapêutico necessário a quem se debate com a enfermidade. A arte não é uma vacina, ou um qualquer outro remédio, sobretudo deverá estar longe de ser um anestesiante. Não tendo propriedades curativas no sentido médico-cientifico, é no entanto algo de que todos nos aproximamos mais em momentos de fragilidade, procurando algum conforto interno. Tem essa inexplicável propriedade de tocar emoções, desenvolver a sensibilidade, insuflar ânimo e afinar energias com o universo que nos rodeia, devolve-nos, em alguma medida, o sentido da vida. Ou como nas palavras de Antonin Artaud, “Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno”.

Podemos perceber que alguém subitamente confrontado com uma enfermidade grave se torne mais sensível às artes. Provavelmente pelas razões aduzidas por Gilles Deleuze, em relação com a nossa citação de Hipócrates em epígrafe, quando afirma que “A obra de arte é algo que perdura e nessa medida vence a morte. A obra de arte é um acto de resistência”. E o ser humano, em tensão com o mundo, devido a uma enfermidade inesperadamente diagnosticada ou por outro motivo qualquer, é naturalmente um resistente. Quando confrontados, seja de que forma for, com a ideia de morte, queremos vence-la. A arte é tantas vezes o campo de batalha onde se trava espiritualmente essa batalha, talvez pelo motivo adiantado por Francis Bacon, importante pintor do século XX, quando afirma que “O desespero e a infelicidade esticam toda a sensibilidade”.

A exposição A Cura pela Arte reúne um conjunto eclético de 28 criadores, distribuídos pelos três espaços que os vão acolher. Esta exposição começou por ser pensada em vários núcleos em função dos objectivos do Projecto Olha-te e pela relativa limitação de espaço da sua sede. Não tínhamos dúvidas da adesão dos criadores ao apelo de solidariedade para com os doentes oncológicos. Sabíamos que não se poderiam acomodar todos os que gostaríamos na sede do Projecto Olha-te, mas entendemos ser importante colocar ali um núcleo da exposição. Este é um espaço que existe em função da solidariedade, da qualidade de vida de pessoas fragilizadas, em suma, do sentido de humanidade para com o outro.

Os criadores que integram esta exposição incorporam também o espírito do Projecto Olha-te, constituindo um pequeno universo muito diverso, onde, no entanto, predomina a pintura como linguagem, ainda que expressa em diferentes estilos e técnicas. Assumidamente não descriminámos criadores quando seleccionamos profissionais e amadores, ou dito de outro modo, quando integramos artistas com escola, com currículo, com experiência e com carreira, com outros de expressão mais modesta. Numa perspectiva inclusiva do Projecto Olha-te entendemos incluir também autodidactas e dois utentes da Cerci Peniche, que aderiram com igual espírito filantrópico. Sublinhamos mesmo esta participação destes dois criadores, como o exemplo vivo de quem faz diariamente da arte uma ferramenta efectiva e afectiva para elevar a sua qualidade de vida e a sua passagem pelo mundo, como afirmava Máximo Gorki na sua Carta aos Jovens Escritores: “O talento desenvolve-se no amor que pomos no que fazemos. Talvez até a essência da arte seja o amor pelo que se faz, o amor pelo próprio trabalho.”

Tivemos desde logo a preocupação de que a narrativa expositiva resultasse numa combinação equilibrada entre os participantes e a sua distribuição pelos três núcleos. Contando com a generosidade de todos concebemos a implantação da exposição tentando evitar o preconceito e incorrer em alguma desvalorização, ainda que não deliberada, dos autores autodidactas, tendo sempre presente que tantas vezes esses se superam e também atingem patamares de excelência, como são exemplos maiores na nossa literatura Jorge de Sena, em nome próprio, e Rómulo de Carvalho, sob pseudónimo de António Gedeão. Ambos com formação nas áreas das ciências puras e ambos escritores, poetas admiráveis e incontornáveis do século XX, na história da cultura portuguesa.

Se a arte e a medicina têm uma relação tão antiga como o primeiro aforismo de Hipócrates, fundador da medicina moderna, não tendo a arte nenhuma propriedade mágica que por si resulte num efeito curativo, como o próprio Hipócrates já se recusava a aceitar, visão de que sempre tentou distanciar-se, não será menos verdade que a obra de arte ganha ressonância interna em cada um de nós. Obras diferentes, de modo diferente em pessoas diferentes. Afinal o mundo contemporâneo é o mundo da diversidade infinita e cada indivíduo, em termos de sensibilidade pessoal, continua a ser o centro do seu próprio mundo. Mas se cada um de nós quiser responder à eterna questão: Afinal, o que é arte? Como poderá responder cada um de nós a esta questão? Talvez encontremos a resposta em Anton Tchekhov, “As obras de arte dividem-se em duas categorias: as de que gosto e as de que não gosto. Não conheço outro critério.” E a organização da exposição A Cura pela Arte espera que o público goste das obras que escolhemos para compor esta mostra. Que aqui encontre bons motivos para acrescentar o seu acervo pessoal, praticando também um gesto de apoio que afirme o valor simbólico da solidariedade.

Lino Romão, Curador da Exposição